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Surgida em Recife no começo de 2002, a Superoutro fazia questão de declarar que era “uma banda diferente da maioria das bandas pernambucanas“. No seu press-release e em entrevistas, eles se distanciavam do Mangue Beat que, mesmo cinco anos depois da morte de Chico Science, continuava a ser prefixo para qualquer nova banda da cidade. 

Fervilhando (sem trocadilhos) de bandas e locais para tocar, a capital pernambucana tinha pelo menos três importantes festivais, pequenas casas de shows além de espaços públicos. E era assim em boa parte por causa do movimento Mangue. Mas no meio disso, Rafael Guerra (baixista, de azul claro na foto), Zeca Bezerra (guitarra, de camisa listrada na foto), Guga Ramos (guitarra e voz, de camisa azul escura ao lado de Rafael na foto) e Bernardo Braga (guitarra, camisa azul, à direita na foto) se juntaram a Thiago Guerra (baterista, atualmente na Fresno) para “em primeiro lugar fazer música para nós mesmos e  dividir nossa angústia criativa com o público”. Isso ainda era 2001 e a primeira mudança viria depois de alguns ensaios, quando Thiago saiu e Sérgio Kyrillos (de camisa vermelha na foto) assumiu como baterista no carnaval de 2002. Rafael, Guga, Zeca, Sérgio e Bernardo

Depois de alguns shows no final de 2003, o quinteto começou a gravar o que viria a ser seu único registro, “Autópsia de um Sonho”. O disco foi produzido por José Guilherme Lima (ex-baixista da Supersoniques e Bonsucesso Samba Clube) com a ajuda de Berna Vieira (ex-Eddie e Bonsucesso Samba Clube) e masterizado por Pablo Lopes. Quando entraram para gravar, a Superoutro tinha 15 músicas mas somente 10 entraram no álbum. Rafael lembra que foi “uma decisão difícil, já naquela época não sabíamos se iríamos gravar outros discos. Terminou que não gravamos mesmo“.

O processo de composição sempre foi coletivo, misturando influências de cada integrante. “Acho que gravamos rápido porque todos já chegaram com ideias bem maduras. Nos juntávamos em casa ou no ensaio, mostrávamos as ideias e cada um ia acrescentando partes à música, sugerindo arranjos, escrevendo letras juntos“, relembra Rafael. De Clube da Esquina, Chico Buarque e Caetano Veloso a Beach Boys, Radiohead, Sonic Youth e Wilco, “Autópsia de Um Sonho” impressiona em todos os seus 45 minutos. Do início rascante d’ “O Lago”, com guitarras que misturam Sonic Youth e Gang of Four,  letras em Português cantadas com o sofrimento dramático do Los Hermanos Venturiano em “A Última Vez”, a contemplações à la Radiohead como em “O Castelo” e “Como Gritar”, essa, uma reencarnação da psicodelia nordestina mesclada a vocais Syd-Barretnianos.

As boas referências e influências se enfileiravam a cada nova música. Até uma audição despretensiosa de “Autópsia de um Sonho” deixava claro que havia quase nada de Mangue Beat na Superouto. Ainda assim, a banda insistia em se distanciar toda vez que era chamada a falar sobre sua música. “Talvez, fora de Pernambuco, todos esperassem que, naquela época, tudo que saísse do Estado tivesse alguma relação com a música regional Pernambucana, e avisávamos logo que não era a nossa praia”, diz Rafael. “De toda forma, não era uma coisa só do Superoutro, várias bandas surgidas na mesma época tocavam nesse assunto. Os jornais gostavam de ressaltar isso, fazer essa diferenciação, ‘mangue x asfalto’, ‘cena pós-mangue’. Talvez fosse uma necessidade de criar factoides para ter espaço na mídia.” E complementa: “Se fosse hoje, preferiria dizer que somos filhos do Mangue Bit. Acho que nós todos quisemos ter banda por conta de Chico Science, Fred 04 e toda a movimentação cultural do Recife na década de 90″.

O título “Autópsia de um Sonho” encaixa perfeitamente na proposta de evidenciar texturas sonoras através de efeitos e ambiências característicos da Psicodelia e, mais tarde, do post-rock mais progressivo.  “O título do disco traz a ideia do aprofundamento e da descoberta a partir do contato com os sonhos, com as experiências além do estado de vigília. Nesse contexto a autópsia não deveria remeter à ideia de um fim, mas de um renascimento, de ressignificação, de uma nova compreensão“, explica Bernardo Braga.

A arte da capa foi feita a partir de fotos tiradas com filmes vencidos de Polaroid . A foto é da varanda do apartamento de Bernardo que depois foi entregue a Mário Barros (primo de Bernardo que viria a contribuir com letras para o Superoutro). Ele digitalizou a foto e encontrou um recorte interessante. O CD foi finalmente lançado em Maio de 2004 numa tiragem de 1000 CDs. “Na verdade CDR, relembra Guerra, “Recife nunca teve uma fábrica de CDs. Teve uma das maiores fábricas de vinil do Brasil, a Rozemblit, mas de CD, nunca. O nosso orçamento não dava para prensar o disco em outro Estado. Então ‘pirateamos’ nosso próprio disco.

A música que abre o disco, “O Lago”,  ganhou um belíssimo clipe, dirigido por Raul Luna, artista visual Recifense, que havia feito clipes para Mombojó e Mellotrons. A produção contou com o apoio de produtoras locais, como a Center e a Videotape, dos departamentos de Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco e da Universidade Aeso Barros de Melo, da galeria de arte Amparo 60, e de vários jovens cineastas e produtores pernambucanos, de forma voluntária, como Leonardo Lacca, Tião, Marcelo Lordello, Gabriel Mascaro, Henrique Spencer, Raphaela Spencer, a curadora e pesquisadora Ana Maria Maia, o cantor Barro, entre outros. Com imagens produzidas em várias locações do Recife, o vídeo concorreu ao prêmio de Melhor Vídeo e Melhor Montagem no Cine-PE Festival do Audiovisual de 2005.

Com um belo clipe e um álbum poderoso em mãos, a Superoutro tocou no Abril Pro Rock em 2005, no Goiânia Noise Festival em 2004, no Festival Dançum Se Rasgum em 2006 (Belém- PA), no Festival de Inverno de Garanhuns  em 2004 e 2005, no Festival Mundo em 2005 e 2006 (João Pessoa- PB), além de dois shows no Teatro Maurício de Nassau em Recife, para lançar o álbum e depois para lançar o clipe. Fizeram também todo roteiro de espaços para shows em Recife como o pub Barramundo Social Club, Pimenta Verde, Armazém 14 e Pátio de São Pedro. Ao vivo a Superoutro era catártica e poderosa e, apesar de terem tocado bastante no Nordeste, Norte e Centro-Oeste, ir para o Sul e Sudeste parecia inviável. “Era difícil financeiramente mas também faltou um pouco de foco, explica Rafael, “ninguém nunca se dedicou exclusivamente à banda.

No fim de 2004, Guga Ramos, vocalista e guitarrista, saiu da banda por motivos pessoais e Artur Maia entrou apenas como vocalista, a banda perdia a terceira guitarra. Segundo Rafael, esse foi um momento crucial na sequência da Superoutro. “Foi um erro de avaliação. Com a saída de Guga e a entrada de Artur, em 2005, fizemos uma reunião onde a pauta era, ‘continuamos trabalhando o Autópsia de um Sonho e vamos tentar tocar no Rio e em São Paulo, ou paramos por aqui e vamos produzir o segundo disco, já que a dinâmica da banda mudou com a nova formação?’. A escolha foi pela segunda opção. Hoje vejo que foi um erro de avaliação enorme, paramos de trabalhar um disco que ainda dava para tirar muita coisa dele, e nunca conseguimos finalizar o segundo álbum“.

Seguindo o combinado, a banda escreveu várias novas músicas e chegou a gravar algumas delas em pré-produção. “Não lembro bem quantas músicas, explica Bernardo, “mas talvez algo em torno de 10. A ideia era trabalhar um pouco mais as músicas e depois gravá-las definitivamente, mas a banda foi se dispersando“.  Das faixas que chegaram a ser pré-produzidas, a Superoutro tem guardado até hoje as masters mas, segundo Bernardo, não é objetivo da banda usar esse material para um lançamento. Talvez regravá-las como foi feita com “O Sol”, regravada em 2019.

A dispersão aumentou quando, em Janeiro de 2006, Zeca foi morar no Rio de Janeiro. Enio Damasceno (Mellotrons e Phalanx Formation) o substituiu na 2ª guitarra. A banda seguiu fazendo shows em 2006 mas depois diminuiram a intensidade para focar na gravação do inacabado 2º disco. Depois de anos sem shows, em 201o a banda fez o que, até hoje é seu último show. “A banda nunca acabou definitivamente. Na última década nos reunimos bissextamente e ensaiamos algumas vezes, além de compor músicas novas“, relata Guerra.

“Autópsia de um Sonho” foi relançado no formato digital para o streaming em Fevereiro de 2021, numa parceria entra Superoutro, Hominis Canidae e midsummer madness. “Acho que seria no mínimo incoerente não manter e disponibilizar os registros de uma época tão importante para as nossas vidas. Se terá relevância para mais alguém além da banda, sinceramente, não tenho como dizer,” declara Bernardo. Já a gente aqui no midsummer madness acha que “Autópsia…” é mais do que um registro, esse disco traz de 2004 influências que se notam em muitas bandas atuais. Separamos abaixo algumas opiniões da década passada mas a melhor coisa que você pode fazer é ouvir o disco.

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TRÊS GUITARRAS E ÊNFASE INSTRUMENTAL
por Ana Garcia para a revista Dynamite
“Superoutro é uma banda de Recife, mas nossa música não tem referências geográficas, poderíamos ser uma banda de qualquer outro lugar. Mas não é porque nascemos aqui que iríamos fazer um som diferente”. O desabafo é de Rafael Guerra, baixista do Superoutro, que fala de uma geração inteira de artistas que começam a surgir na cidade, tendo como meta a pluralidade de sons e não a preocupação com o lugar onde vivem.

Formada por Guga Ramos (voz e guitarra), Bernardo Braga (guitarra), Zeca Bezerra (guitarra) e Sérgio Kyrillos (bateria), além do já citado Rafael, o Superoutro brinca com as suas experimentações desde o início de 2002. Os meninos passaram por algumas fases de indefinição: um dia eram Mikrofonia Drasta, noutro Auto-Reverse, mas desde agosto do ano passado eles são Superoutro. “É uma média-metragem de um diretor chamado Edgard Navarro”, explica Bernardo.

Musicalmente, as suas referências são de um bando de meninos inteligentes com um gosto musical mais abrangente do que o normal: Sonic Youth, Wilco, Radiohead – coisas boas. Cave mais fundo e você encontrará admiração por Charles Mingus, Beatles, Chico Buarque, Tom Jobim – coisas melhores ainda. É uma banda que está em constante movimento, aperfeiçoando e se transformando a cada nota. O vocal e as letras poderiam ser colocados de lado, o poder das suas músicas está no instrumental – uma explosão de melodias delicadas beirando a melancolia. “Já discutimos essa possibilidade (de ser uma banda instrumental). A idéia é inserir na música o que ela exige. Às vezes o vocal é imprescindível, noutras não”, fala Bernardo.

Mas essas conclusões podem ser tomadas quando você escutar o álbum de estréia da banda, “Autópsia De Um Sonho”. Quem esteve presente no show de lançamento percebeu a mesma textura musical apresentada no disco. “Passamos alguns meses nos preparando para gravar e sabíamos que, por uma questão orçamentária, não seria possível gastar muito tempo viajando em novas estruturas para as músicas”.

Autópsia De Um Sonho” conta com dez faixas gravadas no estúdio Fábrica e Batuka, com a ajuda de Berna Vieira (ex-Eddie e Bonsucesso Samba Clube) e mixagem de Pablo Lopes. A produção do disco ficou a cargo de Zé Guilherme Lima (ex-baixista da Supersoniques e Bonsucesso Samba Clube) que, segundo os meninos, “não quis mudar o nosso som, mas deu toques fundamentais para estruturar melhor as músicas”. As três guitarras conflitavam na mesma freqüência, uma formação que surgiu por acaso. “Posso até dizer que os guitarristas estão sempre em freqüências diferentes. Brincadeira, mas discutimos muito”, confessa o guitarrista.

Agora a banda se preocupa em viabilizar “Autópsia De Um Sonho” para o resto do Brasil. As 400 cópias do disco já estão quase esgotadas e por isso eles se preparam para reabastecer o mercado com mais 100 disquinhos. “Inclusive está nos planos da banda fazer uma turnê pelo sul ainda este ano, mas não podemos deixar de buscar opções aqui no Recife, no próprio interior do estado e nas outras capitais do Nordeste”, finaliza Bernardo.

 

Independência é a melhor marca do grupo Superoutro
por Schneider Carpeggiani para o JC / PE
O melhor do festival Coquetel Molotov não foi apenas ter trazido para o Recife, mês passado, os titios escoceses do Teenage Fanclub, com novas e velhas canções de amor o resistente rock’n’roll. Longe disso. Foi, sim, ter provado a existência, entre nós, de bandas, produtores e público que se interessam por uma forma de cultura pop jovem, que passa longe da superestrutura ‘Abril Pro Rock, fusão de ritmos e fantasma da Soparia’, que nos monopoliza desde os anos 90 – década em que conceitos como multicultural e globalização foram usados como chave para solução de todo tipo de problema. E lá se vão 10 bons anos de Da Lama ao Caos…

E o que essa introdução toda tem a ver com o show de lançamento do disco de estréia do Superoutro, Autópsia de um Sonho, que rola hoje, às 21h, no Teatro Maurício de Nassau? Ora, estamos falando de um grupo que representa uma geração – ascendente – de artistas da cidade que busca projeção sem se preocupar em fincar territórios regionais ou com paisagens sonoras locais. Um grupo como o Superoutro poderia ter surgido em qualquer outra cidade, em Curitiba, São Paulo… Sem medo e com medo, os músicos se lambuzam em influências como o Radiohead (antes e depois do Ok Computer) e de todo aquele rock inglês pós-95, há ainda pitadas de eletrônica e até do santo do Los Hermanos.

No texto de apresentação do seu site, o grupo justifica e, de leve, até pede desculpa por suas referências, pois seus integrantes parecem saber onde querem pisar e onde já pisam – “A idéia é fazer um som alternativo, para todos, sem estar restrito a uma cena específica. Na palavra dos integrantes da banda, isso significa em primeiro lugar uma necessidade de fazer música para nós mesmos, e, ao mesmo tempo, dividir nossa angústia criativa com o público”. Ponto para eles.

Música é uma questão de afinidade, de gostos eletivos demarcados, diversão e refrão forte, e não apenas de bandeiras e propostas revolucionárias. Misturar é bom, mas não precisa ser uma obrigação.

Não que o Superoutro seja o primeiro grupo do Recife a dar de ombros para a invenção de uma tradição. Paulo Francis Vai Pro Céu e Supersoniques, por exemplo, também tiveram posturas parecidas, mesmo que com outras referências sonoras e em tempos mais complicados, só que eram casos isolados. O que facilita o trabalho do Superoutro é o diálogo que ele pode manter com outros grupos como Volver, Vamoz!, Mellotrons, Rádio de Outono, Profiteroles, que, distintos, guardam a semelhança de não dependerem de fronteiras geográficas musicais – e muito menos da necessidade de formar algo parecido com uma cena ou movimento.

 

Repertório tenta demarcar território e delinear perfil
Já na faixa de abertura, o Superoutro dá de ombros, com cuidado, para as amarras que poderiam ter feito o seu Autópsia de um Sonho tomar um outro rumo – “ser assim descrente/ sem rasgar o que sente/ transforme-se em você/ ver nem um som à frente/ o mesmo tom sempre/ transforme-se em você”, cutucam, entre barulhinhos eletrônicos, em O lago, RG musical que é também a faixa mais radiofônica do CD.

Com suas intenções demarcadas (e eles sabem que essa é a hora de deixá-las bem claras), a partir daí, os músicos seguem o resto do disco burilando seu território favorito: canções tristes, sobre problemas amorosos, encontros & desencontros, seja na bossa delicada de Última vez ou na melancólica Na areia, que acende uma vela para o Nirvana – ponto de referência inevitável para quem nasceu dos anos 80 para cá.

Como disco de estréia, Autópsia de um Sonho mostra o esforço do grupo em reverenciar seus ídolos e, ao mesmo tempo, de querer colocar de cabeça para baixo os mesmos, mas ainda assim com um pouco de receio na cabeça. Mesmo que, em faixas como O lago e A última vez, os músicos demonstrem que estão, sim, bem próximos da independência de um RG local e/ou estrangeiro. Nessas músicas, eles provam saber que, para ser um ‘(super)outro’, precisam ser eles próprios antes. (S.C.)

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Autópsia de um Sonho 2004

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