Devilish Dear
Vamos recapitular: Devilish Dear é um projeto do carioca Braulio Almeida que em 2015 lançou seu debut intitulado “These Sunny Days” no Bandcamp. Um ano depois, o selo midsummer madness relançou o mesmo álbum e, por algum motivo esotérico, “These Sunny Days” virou um dos melhores álbuns de 2017 segundo blogs estrangeiros especializados em shoegaze e dream-pop.
“Their music can hinge on the subgenre’s classic textures, like on the title track and ‘Face Without Eyes’, but it can also tear those ideas into shreds with aggressive vocals (‘3am’) and assertive synths (‘I Wanna Do It’).”
FACT Magazine, 20 Best Bandcamp Releases of 2017
A empolgação fez Braulio começar um 2º disco e, em 2019, o EP “Appalish” foi lançado junto com um videoclipe.
Depois disso, silêncio. Braulio, Rômulo Collopy (baixo) e Shelly Modesto (voz e letras) simplesmente não conseguiam tempo para se encontrar. “Na realidade é culpa minha. Sempre acho que as músicas precisam de um tempo de maturação, dificilmente as primeiras versões são as finais. Mexo demais e o resultado dessa inquietação nem sempre é melhor que a versão inicial. Mas o som do Devilish se baseia nesse tempo para experimentar”, explica Braulio. “Nesses 16 anos de parceria, chutaria que já trabalhamos em mais de 50 músicas. Embora eu sempre tenha opinião sobre tudo, a palavra final é do Bráulio. Foi o jeito que encontramos de fazer a coisa andar. Senão estaríamos discutindo a primeira música até hoje“, completa Shelly.
Para aumentar o atraso, veio a pandemia. O novo disco ganhava ares de “Loveless”, o famoso disco do my bloody Valentine que não ficava pronto nunca. “Pra dar uma ideia, o riff principal de ‘Mouse on Wheel’ foi gravado em 2017 e ficou guardadinho até eu decidir usá-lo. Acabei criando um loop deste riff original mesmo ao invés de gravar uma nova guitarra. O fato da música ter essa sonoridade da guitarra que usei na época é importante para mim.”
“Mouse on Wheel” é uma das 4 músicas com vocais entre as 10 que compoem o disco. Escrita por Shelly, a música traz a frase que dá título ao álbum, “Army of Nothing”. Segundo a autora, “o título solto é ótimo para alfinetar nossos enviagrados pintores de meio-fio.”
Bráulio gravou todos os intrumentos em casa, exceto alguns vocais, que Shelly gravou na casa dela. As músicas foram ficando prontas lentamente, umas 15 ou 16 no total, que foram reduzidas para 10, segundo Bráulio, “pela coerência no som”. “Ele me enviou versões provisórias de 11 músicas, lembra Shelly. “Trabalhei nas letras e fui devolvendo as ideias. No começo da nossa parceria, ainda como Montecarlo Jive, eu chegava no estúdio com meus caderninhos de letras e a gente ia tentando encaixar nas composições dele. Com o tempo comecei a criar em cima da música pronta. Mas sempre tem um monte de papel espalhado e muita coisa surge durante as gravações. Muita coisa não passa pelo crivo do Bráulio porque ele é super exigente. Na minha opinião, temos um verdadeiro tesouro na gaveta pois a cada lançamento com letra, umas 4 ficam de fora“
Apesar do crivo criterioso, as influências que pairam em “Army of Nothing” são as mais variadas. “Difícil dizer porque minha playlist é sempre uma zona. Num dia normal eu escuto Stereolab, Aubrey, Swirlies, Hermeto Pascoal… mas eu lembro que fiquei obcecado com Serena Maneesh”. Shelly vai pelo mesmo caminho: “A verdade é que não estipulei referências para o Devilish Dear. Eu crio a partir da minha própria bagagem musical e das minhas experiências. Circulava por várias e variadas cenas cariocas, passei por dezenas de bandas, muita energia investida! Mas se você ainda faz questão de nomes, os três que me ocorreram de imediato foram Kazu Makino (Blonde Redhead), Emily Kokal (Warpaint) e Jennifer Charles (Elysian Fields)”.
“The Hipnotist” abre o disco com um sample de “Quicksand” da banda Starcrost, que tem uma levada de samba, bossa nova já na abertura. Seria o tal “shoegaze com cuíca” que o pessoal do Editorial do Bandcamp ouviu em 2017, dando à banda destaque que os catapultou para o “estrelato”? “Eu quero misturar o máximo possível no Devilish Dear. É uma coisa extrema mesmo“, desconversa Bráulio.
As músicas são repletas de efeitos e samples. “Hurtful Pleasures” traz comunicações de rádio descrevendo fenômenos estranhos. “Red” traz uma fala de um obscuro anime, “Mardock Scramble”. “Giants” parece trilha de game ou de um filme de terror mas é apenas um efeito da guitarra. E mesmo sem letras, Braulio garante que há uma mensagem: “A melodia se refere ao esforço em vão mesmo que necessário. Os efeitos são duros, precisos, frios. A guitarra é melódica, vacilante, tentando se fazer ouvir… até que desiste. É uma música que encerra muitas metáforas, apesar de tão simples. Todo mundo em algum ponto já tentou se fazer ouvir em vão”, explica.
Ser invisível, não ser ouvido, é um tema recorrente na Devilish Dear. Shelly discorre a respeito no primeiro single, “Evidence”: “É sobre obstinação ou teimosia mesmo, a frustração de produzir arte sem apoio quando ninguém está interessado, de falar sozinha, de cantar para ninguém“. Sobre as outras letras, ela explica:
Mouse on Wheel
“A inspiração veio da própria música, que até já tinha esse nome. Traz uma ideia muito forte de engrenagens girando, de movimento coordenado, que remete a como nos tornamos dependentes das plataformas sociais e nos sujeitamos a alimentar negócios gigantescos com nossas informações pessoais. Caímos na armadilha do doomscrolling e trocamos, de bom grado, uma vida plena e palpável por um estilo de vida etéreo e desengonçado”.
Hurtful Pleasures
“Hurtful Pleasures é sobre viver intensamente, sem evitações, sem medo de sofrer. É sobre aceitar que a dor faz parte da jornada, que todo mundo vai sofrer mesmo. E que isso é bom”.
Infectious
“Infectious é uma canção cringe. Fala de assumir responsabilidades, trabalhar demais, pagar boletos, resolver burocracias… tanta coisa para se fazer com nossas vidas, e aceitamos pacificamente viver uma semi-escravidão, como se não fosse possível pensar em alternativas. É infeccioso pacas. E faz um mal danado à saúde”.
Depois de quase 5 anos, muitas versões, ajustes e finalizações, “Army of Nothing” será lançado dia 16 de Setembro em formato digital pelo midsummer madness.
Os primeiros dias ensolarados
Braulio Almeida, o rapaz de óculos na foto acima, começou a escrever música há 20 anos atrás, quando ainda era um adolescente de 16 anos. “Nada muito importante“, ele garante. Hoje ele é videografista, ou seja, faz animações 2D e 3D, filmes publicitários para TV, curtas, etc. Ele também tem um estúdio de áudio focado na produção de trilhas pra jogos, trilhas sonoras para filmes e TV e sound design.
Juntar suas produções pessoais com o know-how profissional fizeram o Devilish Dear acontecer. “Foi um desdobramento de outra banda minha, a Montecarlo Jive, com Shelly Modesto (vocalista) e o Rômulo Collopy (baixo). Um material dessa época estava pronto mas ficamos sem tempo de botar a coisa toda pra frente. Peguei vocais e baixos que já estavam prontos, gravei o restante, coloquei outras faixas minhas e amarrei tudo nessa sonoridade do DD. A Shelly fez todas as letras; Collopy, a maioria dos baixos“, explica. O nome Devilish Dear eles tiraram da letra de “Mercury” da banda Processory.
Braulio conhece Collopy há mais tempo, os dois estudaram juntos no Villa Lobos, escola de música no Rio de Janeiro. A Shelly também era de lá mas eles a conheceram via Orkut. “Sim, a gente é velho. Sdds inclusive. Isso foi em 2007″, lembra Braulio. “These Sunny Days” surgiu destes quase 10 anos de composição: “Eu juntei as ideias que achei que valiam a pena, tomei vergonha na cara e fechei o disco com essas pontas soltas. Senão ficam aqueles fragmentos de riffs espalhados que nunca viram nada; é ruim pro carma”.
Lançado por conta própria no Bandcamp em outubro de 2015, “These Sunny Days” traz 8 músicas e uma faixa bônus. A mistura de guitarras shoegazer, alguns efeitos e beats eletrônicos remete imediatamente a my bloody Valentine, Medicine e alguma coisa de Cocteau Twins, principalmente nos vocais de Shelly. “O DD tem um feedback engraçado no público de nicho a que ele se propõe. Vez por outra pipoca um email de alguém dizendo que achou o máximo, ou então que a melhor música do disco é o bônus track”, relata Braulio.
Sem qualquer pretensão, a banda nunca fez um show e também não pretende fazer. “A banda é meu hobby, minha contribuição pras pessoas continuarem ouvindo esse som. Um email de gente falando que se identificou pra mim já é um grande retorno, não bota dindin no meu bolso, mas outras coisas botam. Nem tudo precisa voltar em dinheiro, afinal“.
Hobby só existe quando sobra tempo e Braulio se diz cada vez mais focado em trabalhar com trilhas voltadas pra jogos, como este pro exemplo. Ele diz que ainda existe material do DD que pode ser aproveitado, basta surgir tempo de organizar e mixar. E como se falta de tempo fosse um problema, ele ainda toca em todos estes outros projetos: Kao & the Mind Melt, Montecarlo Jive, Angelfood , Spaced Out Gafieira, Lost Letters.
Mesmo que esse tempo não apareça, não faz mal, “These Sunny Days” é um dos melhores discos gravados na década de 2010, fácil, fácil.
Devilish Dear no Spotify
Devilish Dear no Deezer
Devilish Dear na Apple Music
“The album will challenge some listeners, it ain’t background music. Devilish Dear drag the conventions of the genre straight off a cliff. It’s damn weird! But wow, don’t overlook it.“
Sounds Better With Reverb