the cigarettes ao vivo de costas por Anna C

Em entrevista por email concedida a Matheus Arruda em Agosto de 2022, Marcelo Colares fala sobre os 25 anos do disco de estreia do The Cigarettes, os processos e as novas mixagens. A versão digital de “Bingo (25th Anniversary Deluxe Edition)” sai dia 11.11.22. Estamos tentando prensar uma versão em vinil: a campanha de crowdfunding está nos seus últimos dias, apoie.

Ouça a nova mixagem, de 2022, da música “Annabel Lee” no Spotify, ou no Deezer, ou na Apple Music, ou no Bandcamp.  Abaixo, a íntegra da entrevista. Os grifos e destaques são nossos. [foto acima: em São Paulo, por Anna C.]

De onde surgiu a ideia de remasterizar o disco?

O disco vai ser remasterizado também. Mas o que está dando uma outra cara pro disco e o que eu chamo de possibilidade de modificar o passado é o fato dele estar passando por uma nova mixagem. São coisas diferentes. Quem não grava discos não tem mesmo a obrigação de saber a diferença. A mixagem é quando você pega tudo que foi gravado, cada instrumento de forma isolada, e decide o que vai entrar, como vai entrar, com qual volume, qual equalização, efeitos, etc. A masterização é o que você faz após a mixagem pra realçar os harmônicos, igualar os volumes entre as músicas, utilizar compressão se for o caso pra deixar tudo uniforme e claro, ajustar graves, médios e agudos, etc.

Talvez valha a pena explicar um pouco melhor. Vou parecer didático demais, mas a maioria é ouvinte, e não músico, então é bom que fique bem explicado. Quando um disco é gravado, pelo menos desde os anos 70, os instrumentos são gravados em canais, ou pistas, de forma separada, o que permite tratar (equalizar, jogar efeitos) de forma isolada cada instrumento. A bateria por exemplo pode receber um canal para cada peça, um para os pratos, um pro bumbo, contratempo, etc. No início os equipamentos não ofereciam tantos canais, aí era necessário gravar mais de um instrumento no mesmo canal. Mais ou menos como eu gravei minha primeira fita, “Foolish Things & Blah Blah Blah“, usando um duplo deck. Gravava o violão numa fita, passava essa fita pro outro deck, colocava uma outra fita no primeiro deck, colocava a primeira gravação pra tocar e gravava um outro instrumento enquanto a primeira gravação era executada. Você “dobrava” o canal. Só que nesse processo de dobrar os canais ocorre uma perda de ganho, de volume, porque já é uma gravação da gravação. Essa perda até pode ser compensada com compressão e outros métodos, que não foi o caso dessa minha fita, que ficou com o volume baixo mesmo.

Esse exemplo da minha fita é o cúmulo da precariedade – vou falar sobre lo-fi mais adiante -, mas um álbum excepcional como o “Sgt. Peppers“, dos Beatles, foi gravado em quatro canais e utilizou basicamente esse processo de dobrar os canais, e olha que tem orquestra e o diabo. E tinha também, claro, um gênio como o George Martin.

A remixagem nesse sentido é um processo ainda mais radical do que seria somente uma remasterização. Muita coisa das gravações não foi aproveitada na mixagem original que é a que está no CD que todo mundo conhece. Isso é muito comum. Às vezes você grava um monte de coisa e na hora de mixar opta por deixar de fora isso ou aquilo. Algumas músicas na nova mixagem aparecem com guitarras, baterias, vocais que não estão na mixagem anterior. Mas é tudo das gravações originais. Não houve qualquer gravação adicional feita agora. É uma nova mixagem com melhor aproveitamento do material que foi gravado em 1997. Acaba virando um outro disco.

Bom, mas voltando a sua questão inicial, a ideia surgiu em 2017, quando o disco completou 20 anos de lançamento. Estávamos eu, Rodrigo Lariú e o Dú conversando por email sobre colocar as fitas anteriores ao “Bingo” nas plataformas de streaming. O Dú ia dar um tapa nas músicas das fitas. Essa ideia foi meio que deixada de lado, mas ainda deve rolar. A gente começou a falar do aniversário do “Bingo”, eu falei que ainda tinha as fitas onde o disco foi gravado e o Dú se ofereceu pra remixar o disco. Eu mandei as fitas pelo correio pra ele, que digitalizou tudo e começou a remixar mesmo só no início desse ano, já que o álbum completa agora 25 anos de lançamento.

2- Além de ti e o Eduardo Ramos, tem mais pessoas envolvidas?

No processo de remixagem é só o Dú mesmo. Ele faz e me manda as músicas pra eu ouvir e dar alguma sugestão. Mas a gente tem uma sintonia muito grande, geralmente tenho muito pouco a dizer sobre o que ele faz. Ele conhece o disco há praticamente tanto tempo quanto eu. Talvez fosse legal você falar com ele também. O Lariú tá cuidando do crowdfunding, aproveitando a experiência que ele já tem com o lançamento do vinil “The Cigarettes”, cuja prensagem também foi viabilizada por meio de financiamento coletivo. Ele cuida da parte executiva, define quais vão ser as recompensas, cuida do contato com a fábrica de vinis, faz os orçamentos, toma decisões nessa parte mais operacional. Não sei se eu conseguiria cuidar dessa parte sozinho, caso ele não quisesse participar. Claro que eu tentaria, mas é um alívio muito grande pra mim ter o Lariú à frente dessa parte toda. Somos só nós três, sendo que sem o Dú nada teria acontecido. A ajuda do Lariú é imprescindível no sentido de organizar tudo, fazer virar realidade. É até possível dizer que tudo aconteceria mesmo sem a minha participação. É claro que eu gravei o disco, mas com o material que já existe gravado é bem razoável imaginar que o Dú e o Lariú fariam tudo sozinhos sem que fosse necessária minha participação.

algumas pessoas lugar comum 1997
The Cigarettes tocando na 1ª edição do Festival Algumas Pessoas Tentam te Fuder, em 1998, no Lugar Comum, em Botafogo, RJ.

3- Esse processo, de remasterização, crowdfunding, e tudo o mais, como tem sido para você?

Olha, tem sido uma experiência e tanto. É algo bem intenso. Pra usar uma imagem bem batida, é meio que como entrar numa máquina do tempo, te joga num espaço de muitas indagações e muita autorreflexão. Mas nada dramático ou traumático. Eu tenho curtido muito, ao mesmo tempo que não vejo a hora de conseguir concluir essa etapa pra me sentir liberado para gravar coisas novas que já estão prontas, esperando pra vir à tona. Isso em relação à remixagem em si, que envolve ouvir essas músicas muitas vezes, avaliar se alguma coisa precisa de mais atenção, alterações, ajustes, etc. Sobre o crowdfunding é sempre uma ansiedade grande, porque a possibilidade de não dar certo, de a gente não conseguir o valor necessário, também existe, é claro. Então eu diria que estamos naturalmente um pouco inseguros, porém otimistas. Vamos ver no que dá.

4-Voltando 25 anos: o que foi/era o Bingo?

O “Bingo” é o primeiro resultado mais bem acabado da minha experiência com a música. A culminância do meu encontro com a música. Nada dá mais sentido à minha existência do que a música. O “Bingo” é a cristalização primeira dessa percepção. Acho que é o resultado de algo que eu já vinha planejando desde a infância ou do início da adolescência. Vejo como um disco de rock, que escapa um pouco de ser só indie ou alternativo.

5- Como você enxerga esse disco hoje? Você acha que, de alguma forma, ele possa ter sido injustiçado?

Essa pergunta é difícil de responder, quase uma armadilha. O fato é que ele tem sobrevivido ao tempo, como você mesmo diz em uma das perguntas, algumas pessoas que ouvem o disco hoje nem eram nascidas quando ele foi gravado. Não são todos os discos que conseguem isso. Ao mesmo tempo, preciso tomar algum cuidado ao falar sobre isso para não soar ressentido ou rancoroso. Não creio que injustiçado seja o termo mais adequado. Dizer isso implicaria em tomar como certa a existência de uma justiça transcendente em que tudo que merece obterá o reconhecimento devido, como um dado da natureza. E sabemos que não é bem assim. Se a gente olha pro mundo não é isso o que se vê. O que a gente vê são forças diversas em constante choque em meio ao caos quase absoluto. Mas que sei eu? Não sei se ele foi injustiçado. Posso dizer que ele foi ignorado, passou despercebido, não por todos, mas certamente pela maior parte dos formadores de opinião, da crítica musical. Não totalmente. Mas aí tem outro problema que é aquela coisa chata de desprezarem as bandas que cantavam em inglês. Se cantasse em inglês, regra geral, já era visto com outros olhos. Por implicância, por incompreensão, ignorância, ou incapacidade de perceber que esse não era o ponto em questão. A verdade é que o disco aparece nesse contexto, de condições hostis às bandas que por uma infinidade de motivos, que simplesmente não é o que interessa, cantavam em inglês, ou num idioma próximo ao inglês.

Apesar disso tudo, o tempo tem se mostrado estar a meu favor. Hoje, sinceramente, isso não me preocupa mais. Fiz o que eu podia fazer. Não tenho que convencer ninguém de nada. A música fala por si só. Aqueles que têm ouvido para ouvir que ouçam. Não faz sentido eu insistir para que alguém goste compulsoriamente do que eu faço. Existem aqueles que amam o disco, existem aqueles que amaram desde a primeira hora. E talvez o mais importante: essa longevidade, essa singularidade, foi alcançada sem marketing, sem estrutura de massificação, sem nada.

O disco sobreviveu esse tempo todo por conta própria, exclusivamente por causa da música. Eu fico anos sem fazer shows e quando eu vou tocar, sempre há pessoas que ainda se lembram de “Lips 2”, “The Beauty of The Day”, “Happiness” e, é até engraçado, mas posso dizer sem forçar a barra, ainda se lembram dessas e de tantas outras. O que mais eu posso querer? Fama, glória e fortuna? Gostaria também, mas, parafraseando Bataille, existem duas certezas nessa vida: a de que não se pode ter tudo e a de que iremos morrer. Já houve quem dissesse que era um disco à frente do seu tempo. Pode ser? Pode ser. Poderia até começar a falar de astrologia, falar que tenho sol e ascendente em aquário, sou duplamente aquariano, o que poderia gerar uma antipatia desnecessária. Então digo que isso não importa. O que me mobiliza e importa de verdade pra mim é continuar fazendo música. O que eu já fiz está feito. O que outras pessoas vão fazer ou deixar de fazer com o que eu já fiz, o que vão pensar ou deixar de pensar, simplesmente não é problema meu. Não vou brigar com ninguém nem vou brigar com o passado. O meu problema é continuar fazendo música, seguir em frente, até o fim.

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The Cigarettes acústico no Café Elétrico em SP, 2012. Foto por Yan Boechat, talvez.

6- E, ao relançar o disco, há alguma pretensão?

Da minha parte não. A única pretensão relacionada à música que eu tenho é a de conseguir gravar mais cinco discos antes de morrer. O que nem é tão fácil assim. Possivelmente com o relançamento do “Bingo” devemos fazer alguns shows, se houver condições pra isso. Se vai acontecer ou deixar de acontecer alguma coisa, novamente, it’s not my fucking problem at all, rs. Eu tenho saturno na casa 5 do meu mapa astral, o que em astrologia indica quase que com certeza não deixarei nenhum legado genético, não terei filhos. Deixarei no lugar um legado estético e isso é o que me move, o que me fascina e o que me impulsiona. Na verdade não me preocupo com mais nada além disso. Mas “só isso”, em si, já é uma grande pretensão.

7- Você vê o Marcelo de 25 anos atrás como um estranho, no sentido de uma pessoa diferente? Como tem sido essa percepção para você?

Na verdade, sou eu mesmo, não vejo como alguém estranho, vejo como alguém bem próximo. Hoje inclusive vejo como alguém bem mais próximo, afinal é o mesmo espírito num momento diferente da jornada. Hoje me parece alguém até bem mais próximo porque agora me sinto melhor equipado para entender o que acontecia, compreendo processos internos que na época simplesmente aconteciam sem que eu me desse conta do porque aconteciam, ou mesmo parasse pra pensar a respeito, já que eu estava vivendo aquilo tudo. A reflexão só ocorre, se ocorre, é só depois. O contemporâneo é sempre labirinto, só depois é que a gente vai olhar pra aquilo que viveu e talvez conseguir entender um pouco melhor. Eu era jovem, com comportamentos condizentes com aquela fase da vida, com a energia borbulhante, que hoje me parece excessiva, da juventude. Não sinto nenhuma nostalgia, zero. A vida tem o seu desenrolar e cada momento tem as suas dores e alegrias. Lutar contra isso, agarrar-se ao passado, ou ignorar o presente, vejo como um estado anômalo, uma espécie de distúrbio. Aliás, inicialmente, justamente pelo que eu acabei de falar, resisti à ideia de qualquer comemoração ou celebração dos aniversários do disco. Mas fui percebendo que era algo necessário. Ainda mais como está sendo feito, com a remixagem, com a transformação do disco, com a alteração do passado. Certamente que tem sido algo até terapêutico, no sentido de jogar muita luz sobre uma parte importante do meu passado que é o “Bingo” e tudo associado a ele pra mim, que é muita coisa, que de certa forma determinou até como a minha vida tem sido e é hoje.

Mexer nesse disco hoje tem me proporcionado uma clareza maior de como a música foi e é importante na minha vida. Pessoas que me marcaram ao longo do caminho, amigos de décadas, namoradas que eu tive, quase tudo partiu da música, do Cigarettes e especialmente do “Bingo”. É um momento de insights muito esclarecedores. Por isso digo que é também terapêutico.

8- Pode me contar um pouco sobre a produção do Bingo? Onde rolavam as gravações?

O “Bingo” foi gravado no Estúdio Freezer, no Rio. Ficava numa galeria comercial no térreo de um prédio residencial na Praia de Botafogo. Os donos eram o Gustavo Seabra e o Dodô Azevedo da PELVs. Havia sido aberto no ano anterior, 1996, quando eu gravei lá a “Brazil’s Sad Samba“, a segunda fita do Cigarettes lançada pelo midsummer madness. Foi a existência do Freezer que possibilitou ao midsummer o lançamento dos primeiros cds do selo, o primeiro do Cigarettes e o segundo da PELVs, “Members to Sunna”. Era um estúdio profissional, embora as instalações fossem num espaço relativamente pequeno, uma loja comercial, com o pé direito alto e três ambientes, pequenos, porém aconchegantes. O estúdio funcionava também como um ponto de encontro pra toda a cena indie carioca que naquele momento era basicamente Pelvs e Cigarettes. O Freezer foi um espaço importante, diria até que fundamental.

A ideia inicial era a de que o Gustavo Seabra produzisse o disco, mas a gente se desentendeu logo no início porque eu queria gravar um monte de guitarra alta, distorcida, feedback, barulho e ele andava numa viagem mais clean, mais violão, guitarra limpa, e não rolou. Desentendimento sem treta, de comum acordo, mais ou menos. Aí eu chegava no estúdio e quem estivesse lá acabava operando os equipamentos e eu fazia o que eu quisesse. A produção nesse sentido de ter alguém pra produzir não rolou. Eu mesmo que direcionei como eu queria, dentro das minhas limitações naquele momento.

9- Quais eram os equipamentos usados?

O Freezer tinha uma mesa muito boa, profissional, Mackie, de 16 canais, dois gravadores ADAT, com oito canais cada um. Tinha um computador lá também. A Pelvs chegou a usar o Cakewalk, aquele programa que depois virou Sonar, e chegou a gravar algumas coisas usando ele. Aqueles sons de trumpete, uns pianos que tem no “Members to Sunna”, foram gravados usando o Cakewalk. Mas eu não usei nada disso. Alguns sons de piano, algumas baterias eletrônicas, que estão no “Bingo” eram de um teclado Roland que pertencia ao Alexandre Maraslis, um cara muito gente fina, ligado em rock progressivo, que trabalhava no estúdio, que tocou em algumas faixas do disco e me ajudou a gravar algumas coisas. Usei na maior parte do tempo uma guitarra fuleira, uma dessas imitações nacionais de Les Paul, uma Giannini imitação da Stratocaster e uma Yamaha minha que também imitava a Strato. O baixo também era um Giannini, do Genú, baixista da PELVs. A bateria era melhorzinha, uma PEARL. Naquela época ainda não era tão fácil comprar instrumentos importados. Logo depois lembro que ficou bem mais fácil. Os efeitos de guitarra eram de um rack da Alesis com vários presets armazenados que a gente pegou emprestado do guitarrista de uma banda chamada Piu Piu e sua Banda, que também tava gravando um disco lá na época e era uma espécie de Mamonas Assassinas mais trash. Um dos ‘hits’ deles era “Bob faz meinha”. Lembro que tinha um preset que eu gostava muito e usei em algumas músicas, como na guitarra de “Friendship”. Chamava-se ‘In a cloud’. Gostava especialmente desse nome e era uma regulagem de delay. Pro barulho eu usava várias distorções desse rack e muito também um pedal da Boss que não sei de quem era, se do Fábio Leopoldino ou do Gustavo Seabra, mas acabou ficando comigo, Super Feedbacker & Distortion. Gosto muito dele, tenho até hoje. Pra gravar os vocais a gente alugou por um dia um microfone condensador modelo TELEFUNKEN ELA, o que me fez gravar todos os os vocais de uma vez só, num sábado, do final da tarde até meia noite, quase uma da manhã..

10- Na época, o que você estava ouvindo, que influenciou no disco?

É engraçado isso das influências. Na época eu ouvia umas bandas pouco conhecidas, tipo Quickspace Supersport, Halo Benders, Spoonfed Hybrid, Th’Faith Healers, graças a um pessoal que fazia parte da galera e que estava sempre atrás de coisas mais desconhecidas. Mas desde os 12, 13 anos que eu ouvia muito Velvet, Smiths, JAMC, entre tantos outros. Muito por influência da revista BIZZ, que nessa idade eu comprava religiosamente todo mês. A banca de revistas era o mais próximo do que se poderia chamar uma internet da época. No sentido de ser um lugar para conseguir informações novas. Havia outras revistas tipo a Roll, a Somtrês, mas a principal era a Bizz. E antes disso, como qualquer pessoa que ouvisse música no Brasil nos anos 80, ouvia muito rock nacional. Eu tinha também, nessa idade, 12, 13, alguns discos do Caetano Veloso, aquele que ele gravou em Londres e aquele que tem “Estrangeiro” e “Eu sou neguinha”. Todo dinheiro que eu conseguia juntar eu gastava com discos, ou comprando nas lojas de discos aqui em Itaperuna, ou encomendando pelo correio de lojas de São Paulo, como a Wop Bop. Gravava muitas fitas também. A única forma de se ouvir música naquela época era ouvir rádio, comprar discos, ou gravar fitas. Parece até inacreditável falar isso hoje. Mas quem viveu naquela época vem de um outro mundo literalmente. Foram transformações muito frenéticas num curto espaço de tempo. Mesmo uma cidade pequena como Itaperuna, com 100 mil habitantes, tinha umas quatro ou cinco lojas de discos. E o rock vendia. Eu comprei The Smiths, Mercenárias, De Falla, tudo aqui. Fora coisas tipo Beatles, Led Zeppelin, U2.

Tudo isso pra falar que embora exale do “Bingo” muito Pavement, Smiths, JAMC, Dinosaur Jr., Velvet e que tais, se você ouvir com atenção vai encontrar também Legião Urbana e até mesmo Kid Abelha. Tem inclusive um plágio inconsciente de Kid Abelha, da música “Pintura Íntima”. Levei alguns anos pra perceber, e mesmo pra aceitar, mas tem uns três ou quatro compassos na introdução e no fechamento de “Sweet Little Darling” que é igualzinho a “Pintura Íntima” do Kid Abelha. Acho que juridicamente, por ser um trecho muito pequeno, nem caracterizaria plágio. Mas é igualzinho. Nem sempre o que influencia é aquilo que a gente elege como preferido. Tudo o que você ouve, vê e sente, durante sua vida inteira, acaba influenciando, independente da sua vontade. É assim.

Mas acho que uma das características que fez o “Bingo” ser um ‘sucesso’ entre os indies brasileiros é o fato dele condensar senão tudo, mas muito do que foi produzido de um determinado tipo de música até aquele momento num disco só.

Colares

11- As fitas estavam guardadas contigo, pelo que li no DATABASE.fm. Por onde essas fitas estavam ‘perdidas’ nesses últimos vinte e cinco anos?

Quando as gravações terminaram eu levei as fitas comigo. Mas meio que como uma lembrança, um souvenir. Jamais que eu ia imaginar que o disco seria remixado 25 anos depois. Quando eu voltei a morar em Itaperuna, em 1999, eu trouxe as fitas comigo. Mas seguindo o mesmo raciocínio do souvenir. Aí me mudei várias vezes, me casei duas vezes, me separei, as fitas ficavam num saco plástico desses de supermercado, num canto num quarto de bagunça, ou dentro de um guarda-roupas. Nunca dei muira atenção a elas, mas sempre me acompanharam. Não deixa de ser curioso. E olha que eu sou muito desorganizado, em excesso. O mais provável seria que eu tivesse perdido ou jogado fora numa das minhas mudanças. Mas não. Cá estamos com o disco remixado. Por algum motivo as fitas foram preservadas por 25 anos. Não me pergunte como. Providência divina talvez.

12- Eu – e creio que muitas outras pessoas também – fui apresentado ao disco como um ‘indie rock brasileiro’/lofi. Como o disco foi gravado? Existia a procura por essa estética sonora?

Acho que existe muita mistificação em torno do assunto lo-fi. Não gosto de gravações lo-fi. O que acontece é que às vezes gosto de músicas que foram mal gravadas. Se eu ouço é por causa das músicas e não porque a gravação tá abafada ou mal mixada. Pra mim isso não existe. Da mesma forma com as gravações. Se tá abafado não é porque eu busquei aquela “sonoridade”. Tá daquele jeito por alguma deficiência técnica, falta de equipamento adequado, ou algo do tipo. O que acontece é que muitas vezes eu preferia fazer do jeito que fosse possível, com o que eu tinha a mão, do que não fazer esperando pelas condições ideais pra poder fazer. E foi isso o que aconteceu com o “Bingo”. Ele foi mixado por alguém que tava passando um aperto pra conseguir um resultado minimamente passável, no caso eu mesmo. Nunca foi proposital. Por isso também a gente achou que seria uma boa remixar o disco agora. É uma espécie de resgate, de reparação histórica.

13- Vinte e cinco anos é bastante tempo. Uma galera que escuta o disco hoje, não tem isso de idade. Quais são as maiores diferenças perceptíveis, ao revisitar o disco nesse processo?

Toda a gravação e especialmente a mixagem foram feitas sob circunstâncias bem adversas. Detalho bem essas condições no blog que tá no database.fm. Não foi culpa de ninguém ter sido assim. Só foi assim. Éramos imaturos, inexperientes, digo, todos que participaram de alguma forma, da gravadora ao estúdio, passando por mim claro, quem tocava comigo, quem estava por ali. Não que tenhamos melhorado muito, mas a vida, o tempo, mal ou bem, na base da porrada ou não, ensina algumas coisas, gosto de pensar assim. Foi uma coisa, sob o meu ponto de vista, feita à força, contra tudo e contra todos. Não havia demanda alguma para um disco como esse, não havia interesse, não havia grana. O rock era alardeado por toda, toda não, mas pela maior parte da crítica especializada, como um gênero defunto, talvez mais especialmente aqui no Brasil. A música eletrônica era o presente e o futuro, o alfa e o ômega. Prodigy e Chemical Brothers, que eu até gosto. “Smack my Bitch Up” e “Block Rockin’ Beats”. Lembro de ouvir gente falando: pra que um disco desses agora? Isso já era! Essa era a tônica dominante. Supostamente esse era o espírito daquele tempo, 95, 96, 97. Estávamos nadando nem contra a corrente porque não havia corrente, não havia água, estávamos nadando era no deserto.

Só pra você ter uma ideia, o disco como ficou conhecido, o que acabou sendo lançado lá em 1997, foi quase todo mixado por mim, sozinho. Alguém que nunca tinha feito isso antes, na correria, sem tempo pra ouvir com cuidado, uma tarefa complexa feita por alguém que naquela altura não tinha nem a experiência nem o conhecimento necessários. Mesmo hoje, talvez eu me saísse um pouco melhor, mas não chego nem perto das habilidades de alguém como o Dú. Ainda assim, é por causa daquele resultado obtido de forma totalmente precária que a gente está tendo essa conversa agora, vinte e cinco anos depois.

Não sei se respondi exatamente o que você perguntou. Mas a impressão que dá é que seria mais fácil, mais comum, gravar um disco como esse hoje em dia.

14- Há antigos demônios a serem espantados ainda? haha Tem sido uma aventura?

Se havia demônios acho que agora já estão todos exorcizados. Sempre haverá uma coisa ou outra, afinal somos feitos de sombras também. Mas relacionados àquele período acho que a ressureição do “Bingo”, revigorado de forma inesperada, colocou tudo às claras. E meio que coloca um ponto final nessa história pra mim, um ponto final nas pontas soltas. É de certa forma, agora, um momento de reconciliação, de pacificação com o que eventualmente havia ficado mal resolvido, um instante de libertação do passado. O Dú terminou ontem (escrevo isso no dia 24 de agosto) a remixagem, agora faltam alguns pequenos ajustes e a remasterização que vai ser feita pelo Alan Douches, o mesmo que masterizou meu último disco, o “Saturno Wins”. Ele já fez trabalhos pra muita gente incrível, Patti Smith, Sufjan Stevens, Animal Collective, muita gente, então a expectativa é a de que o disco fique com um som grandioso.

Sobre exorcismo, o Dú falou um lance interessante comigo e acho que merece uma citação:

“Em algumas semanas consigo finalizar esta passada inicial e atacar alguns pontos, escutar suas opiniões. Mas apesar de ser o mesmo disco, é outro álbum. Não melhor, não pior (vai ter gente falando isso, eu mesmo falei isso internamente algumas vezes) mas sim o resultado de um exorcismo (não de uma exumação). Exorcismo da cena, de coisas que todos passamos, de quem foi, de quem fica, de quem mudou de país, de quem não se considera mais indie, de quem vendeu as guitarras para comprar toca-discos, de quem se vendeu… good or bad, happy or sad.

Foda.”

E sim, tem sido uma grande aventura pra minha subjetividade.

15- Caso precisasse apresentar o Bingo para alguém, como descreveria o disco?

Um disco feito por alguém que segura nas mãos o próprio coração dilacerado e sangrando. Se isso fosse possível.

16- Sobre o relançamento: vi no Instagram que o crowdfunding abre dia 2 de setembro… Como será? Haverá limite de cópias? Há previsão de conclusão?

A ideia é que dure 40 dias, indo até 10 de outubro. Serão 250 cópias em vinil e 300 cópias em cd. Eu andei falando que seria vinil duplo e eu não estava totalmente errado. Só que será um vinil 12″, com as músicas que saíram na versão original, remixadas. Na minha percepção acabam parecendo outras músicas. As mesmas composições, as mesmas gravações, só que com muitos acréscimos de coisas que não haviam sido aproveitadas na primeira mixagem, feita de forma atabalhoada, em 1997. E um vinil 7″ com as quatro faixas extras. Vai ser um Bingão, o 12″, e um Binguinho, o 7″, rs. Isso tudo, claro, se todo mundo de fato participar e o crowdfunding vingar. O valor pra fazer isso tudo talvez desse pra comprar um carro semi-novo e eu não tenho dinheiro algum.

17- Nos discos novos, terão músicas inéditas ou versões diferentes?

Imagino que você esteja falando dos discos novos do “Bingo”. Para ser bem fiel à verdade, são quatro faixas extras que não são exatamente inéditas. Mas soará como se fossem para a grande maioria. Elas ficaram de fora da versão original do “Bingo” mas aparecem na fita “Ashtray 94-98: Lighters, Oddities & Aluminium” lançada no início de 1999 e que reúne sobras de gravações diversas e meio que fecha esse período Bingo/anos 90 da produção do Cigarettes. Digo que as faixas extras soarão como inéditas porque além de ressurgirem agora com uma mixagem, na minha opinião, espetacular, feita pelo Dú, muito pouca gente ouviu essa fita.

Quanto a discos novos do Cigarettes serão só inéditas. Já tenho muitas músicas novas, feitas recentemente, e algumas até antigas, feitas nos anos 90, que eu ainda penso em gravar. Mas vou precisar esperar passar essa história do “Bingo”, parece impossível conciliar no momento. É questão de tempo até eu começar a botar pra fora as coisas novas.

18- Agora uma pergunta sobre “Friendship”, de onde veio a ideia de colocar um trecho (do que me parece ser) Scooby Doo?

Então, essa ideia foi meio estapafúrdia. Na hora pareceu legal, divertido, mas na realidade, hoje acho que não tem muito a ver. Na verdade não tem nada a ver. É uma coisa muito nonsense demais. Vou contar a história toda, ajuda ainda mais a ter uma ideia de como eram feitas as coisas naquele período. Nessa versão remixada esse sample não aparece mais. Até porque isso foi incluído na hora da masterização e não está nas fitas onde o disco foi gravado. Daria muito trabalho, se é que não seria mesmo impossível, recuperar o desenho e o trecho exato de onde foi retirado. É sim de um desenho do Scooby Doo.

O disco foi masterizado pelo VRS Marcos, na época um dos sócios do midsummer madness e ex-guitarrista da PELVs. Eu acompanhei a masterização, dizendo se precisava de mais grave, mais agudo, etc. A gente fez em dois dias. Ele morava na Barra da Tijuca. Eu no Flamengo. Longe pra caralho. Aí ele me pegava de carro no Freezer, em Botafogo, e depois me trazia de volta. Foi numa sexta de noite e num sábado de manhã e de tarde. Ele era um cara engraçado. O disco foi masterizado no Cool Edit, não sei se você chegou a conhecer, depois esse programa também mudou de nome, acho que foi comprado pela Adobe. Mas era um programa muito básico. Tipo um editor de áudio for dummies. Masterizar um disco com ele seria o equivalente a fazer um filme no Windows Movie Maker. Até dá pra fazer, mas olhando hoje é uma coisa risível.

Aí ele tinha alguma coisa como um cd com sound effects. Foi de lá que a gente tirou aquela sirene que tem em “Junk”. Ao mesmo tempo, embora fosse uma coisa primária, parecia legal, era meio que uma novidade. A gente foi masterizando, demorava pra caramba pra passar os filtros, Windows 98. Lembrando disso agora parece inacreditável de tão tosco. E eu lembro que eu achava muito maneiro. Aí chegou em “Friendship” que tem a introdução com o dedilhado de guitarra e a gente achou que seria legal colocar alguma coisa ali também. Não seria, mas a gente tava empolgado. Acho que foi ele que deu a ideia da gente gravar alguma coisa da tv, ele tinha um gravadorzinho DAT, outro formato, diferente do adat, a gente ligou a tv e ficou passando os canais procurando alguma coisa. Passou pelo Cartoon Network e a gente: “ah, vamo gravar um desenho”. Tava passando o Scooby Doo e foi. Totalmente ao acaso, randômico, aleatório, nada a ver com nada. Foi isso.

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